sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Polêmica Noel Rosa versus Wilson Batista


A Polêmica Noel Rosa versus Wilson Batista
Menos de três anos foram suficientes para a Polêmica Noel Rosa (1910-1937) versus Wilson Batista (1913-1968) consagrar uma série de sambas antológicos e escrever um precioso capítulo na história da Música Popular Brasileira.
Na década de 1930, quando o bochincho entre os dois sambistas começou, o poeta da Vila já era afamado compositor enquanto o jovem Wilson Batista ainda despontava como promissor sambista oriundo da Mangueira.
Posteriormente , na década de 1940, Wilson Batista se tornaria um  grande sambista brasileiro. Autor de clássicos como “Meu mundo é hoje”, “Bonde São Januário” e “Acertei no milhar” (com Geraldo Pereira), Wilson Batista não perdeu a oportunidade, no início de sua carreira, de polemizar com Noel Rosa.Assim ganhou espaço no mundo do samba e a oportunidade de desfilar em versos e melodias, seu enorme talento.
A música “Lenço no Pescoço” foi uma das primeiras composições de Wilson Batista e inaugura a Polêmica com Noel. Ao exaltar a figura do malandro provocador e desafiador o sambista manifesta clara apologia à malandragem:


LENÇO NO PESCOÇO - 1933
(Wilson Batista)

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

Meu chapéu do lado...

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

Meu chapéu do lado...

E ele toca
E você canta
E eu não dou
Ai, meu chapéu do lado...

Segundo João Maximo e Carlos Didier (os maiores biógrafos do sambista de Vila Isabel):
(...)“Noel Rosa conhece Wilson Batista dessas noites vagabundas da Lapa, passadas entre copos de cerveja e mulheres cansadas. E é para ele, Wilson,ou melhor,para rebater verso por verso no que está dito em Lenço no pescoço que Noel escreve Rapaz folgado.”
Não se sabe ao certo qual foi a real motivação para que Noel respondesse em samba aos versos de Wilson. Alguns estudiosos sustentam que Noel havia sido influenciado pelo amigo Orestes Barbosa. Este teria publicado um artigo em que condenava a “apologia ao crime em forma de música”. Outros pesquisadores não compram a mesma tese. Consideram que Noel Rosa era simpático à figura do malandro, tanto que por muitas vezes a mencionava em seus sambas, e que apenas a influencia de Orestes Barbosa não explicava o incomodo causado a ele.Estes defendem que Noel Rosa projetou em Wilson Batista um rival por questões amorosas.Em uma ocasião específica na Lapa ,Noel havia ficado desapontado com Wilson quando o jovem sambista disputou, tendo melhor sucesso, a mesma dama que havia atraído a atenção dele.Na primeira oportunidade Noel Rosa replicou com a intenção de dar uma lição ao moço da Mangueira: 


RAPAZ FOLGADO - 1933
(Noel Rosa)

Deixa de arrastar o teu tamanco...
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco,
Compra sapato e gravata,
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.

Com chapéu do lado deste rata...
Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção,
(Eu) Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão.

Malandro é palavra derrotista...
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista.
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.

Havia na letra de “Rapaz folgado” a ironia idiossincrática de Noel quando propõe que se troque o termo malandro por rapaz folgado em recado diretamente dirigido à Wilson Batista,que por sua vez se aproveitou do embate anunciado para se tornar famoso no meio musical. Não perdeu a oportunidade de escrever “Mocinho da Vila”:


MOCINHO DA VILA - 1934
(Wilson Batista)

Você, que é mocinho da Vila,
Fala muito em violão,
Barracão e outras coisas mais.
Se não quiser perder o nome,
Cuide do seu microfone,
E deixe quem é malandro em paz.
Injusto é seu comentário,
Fala de malandro quem é otário,
Mas falando não se faz.
Eu, de lenço no pescoço,
Desacato
E também tenho o meu cartaz

Noel Rosa ignorou a tréplica de Wilson Batista, considerando o samba “Mocinho da Vila” fraco em letra e melodia e optou por continuar a escrever sambas alheios à Polêmica, percebendo que, ao rebater, ampliava a visibilidade artística do algoz. Um dos sambas compostos nessa época foi o antológico Feitiço da Vila, em parceria com Vadico, em que Noel exalta o bairro de Vila Isabel:


FEITIÇO DA VILA - 1934
(Noel Rosa -Vadico)

Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo!

Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba!

A Vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem...
Tendo nome de Princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente...

O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora!

Eu sei por onde passo
Sei tudo que faço
Paixão não me aniquila...
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte,
Meus senhores, eu sou da Vila!

Em feitiço da Vila, um dos clássicos mais populares da história, Noel trata o samba como um “feitiço decente”, que contagia os que escutam. Mostra também a sua preocupação  com a receptividade social e comercial do gênero na década de 30,quando o samba alcançaria uma posição de destaque na industria fonográfica brasileira.
Nesta composição Noel também afasta o samba da relação que se fazia, obrigatoriamente , à cultura e religiosidade afro-brasileira, afirmando ser o feitiço "sem farofa, sem vela e sem vintém".

Na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, Noel criou novos versos para o sucesso Feitiço da Vila. Esses versos, cantados informalmente à mesa dos bares , teria motivado a resposta seguinte de Wilson Batista:

Versos posteriormente criados em Feitiço da Vila

Quem nasce pra sambar
Chora pra mamar
Em ritmo de samba.
Eu já saí de casa olhando a lua
E até hoje estou na rua.
A zona mais tranqüila
É a nossa Vila
O berço dos folgados;
Não há um cadeado no portão
Porque na Vila não há ladrão.

Nos versos escritos posteriormente ao sucesso da música, Noel menciona à infância em Vila Isabel, sobretudo, aos tempos em que o bairro ficou afamado por atrair ladrões. Segundo Noel, essa situação pertenceria a um passado distante  e ,à altura, os moradores da Vila  podiam  se orgulhar de não mais precisar de cadeado nos portões.
Desde que sua canção Mocinho da Vila fora ignorada por Noel, Wilson Batista estava fora de cena. Entretanto se manteve  fiel ao sonho de se tornar um sambista famoso e ciente que nenhum compositor popular brasileiro estava tão em evidência quanto Noel, Wilson escreveu Conversa Fiada:
CONVERSA FIADA - 1935
(Wilson Batista)
É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço.
Eu fui ver pra crer
E não vi nada disso.
A Vila é tranqüila,
Porém é preciso cuidado:
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.
Eu fui lá na Vila ver o arvoredo se mexer
E conhecer o berço dos folgados.
A lua nessa noite demorou tanto,
Assassinaram-me um samba.
Veio daí o meu pranto. (assista ao trecho do Filme Noel, poeta da Vila) 


Noel dessa vez não ficou impassível à bela composição de Wilson Batista, que apresentava uma surpreendente e rica linha melódica e uma letra eminentemente bem construída, debochada e ofensiva. Noel não podia ignorar a nova canção e a
contra-ofensiva deveria ser letal e em grande estilo. Foi então que Noel compôs um dos sambas mais bem elaborados e de maior sucesso de sua carreira, Palpite Infeliz.

PALPITE INFELIZ - 1935
(Noel Rosa)

Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo,
Ao som do samba dança
até o arvoredo.
Eu já chamei você pra ver,
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.

A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente.
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

No verso inicial e certeiro :"Quem é você que não sabe o que diz?", Noel ironiza o fato de Wilson ainda não ser um artista conhecido (quem é você?) não sabedor de suas argumentações(que não sabe o que diz). Além de uma provocaç
ão pessoal dirigida a Wilson, Palpite Infeliz se tormou um samba congregador ,uma vez que exaltava a qualidade de Vila Isabel sem depreciar os demais redutos do samba.

“Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.”


Porém Wilson assimilou  o recado direto, sem o mesmo  entendimento do tom congregador da letra e a nova réplica veio sem a mesma elegância. Como um golpe abaixo da cintura, Wilson compôs Frankenstein da Vila, onde satirizava a aparência física de Noel, em particular o defeito que tinha no queixo causado por um acidente na hora do parto.(ouça abaixo)

FRANKENSTEIN DA VILA - 1936
(Wilson Batista)

Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém,
Que até parece o "Frankenstein".
Mas, como diz o rifão,
Por uma cara feia,
Perde-se um bom coração.

Entre os feios estás na primeira fila,
Eu te batizo "Fantasma da Vila".
Essa indireta é contigo,
E depois não vás dizer
Que eu não sei o que digo.
(Sou teu amigo)

Há pessoas próximas de Noel que afirmam que ele não deu importância ao samba,e que levou com bom humor , mesmo  reconhecendo um conteúdo depreciativo e agressivo na letra .Outros amigos de Noel  garantem que a história foi diferente e que o sambista ficou profundamente ressentido com a ofensa de Wilson Batista,chegando até, em uma ocasião, a chorar em uma mesa de bar. Ainda no mesmo ano, Wilson escreveu "Terra de Cego". De acordo com os biógrafos de Noel Rosa esse samba foi cantado por Wilson frente à frente a  Noel no Café Leitão:



TERRA DE CEGO - 1936
(Wilson Batista)

Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.
És o abafa da Vila, eu bem sei,
Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.
Pra não terminar a discussão
Não deves apelar
Para um barulho na mão.
Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar. (ouça abaixo,em 22´35´´)

Noel elogiou a melodia construída por Wilson, mas lhe fez um pedido, no próprio bar,para que trocasse a letra do samba.
“Como Wilson também havia andado de namoro com Ceci- uma antiga paixão de Noel Rosa -, a nova letra foi dedicada a ela. Com a música pronta, Noel viveu um "amor de parceria": a mulher era Ceci; o parceiro, Wilson Batista.”(blog do Josiel)



DEIXA DE SER CONVENCIDA - 1936
(Noel Rosa - Wilson Batista)

Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.
És uma perfeita artista, eu bem sei,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal
No arame eu já dei.
(Muita medalha eu ganhei!)
E no picadeiro desta vida
Serei o domador,
Serás a fera abatida.
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé
Em amor, em amor de parceria.

O samba "Deixa de ser convencida" selou a Polêmica.
É impossível mensurar o quanto Noel se ressentiu, com relação ao teor ríspido e agressivo das letras de Wilson,sobretudo no samba "Frankenstein da Vila".
Wilson Batista, alcançou o seu objetivo que era ser um grande compositor e emplacou sucessos nas vozes dos maiores intérpretes da década de 1940.Tinha por hábito vender sambas o que impossibilita de calcular o tamanho de sua obra, já que “abriu mão” de dezenas deles, muitas vezes para acerto de dívidas.
Em maio de 1937, aos vinte e seis anos, após uma estadia em Belo horizonte para curar da tuberculose , Noel Rosa faleceu.Deixou um acervo de mais de trezentos sambas, entre os quais, muita obras- primas como “Último desejo”,”Pra que mentir?”,”Com que roupa” e “Conversa de botequim”. Muitos incluem a musica João Ninguém como parte da Polêmica embora não haja menção direta a Wilson Batista.(ouça abaixo)



Referências:
MÁXIMO, João e DIDIER, Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Linha Gráfica e UNB, 1990.
CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo, Moderna, 1996.
Noel Rosa pela Primeira Vez - Discografia Completa. Ministério da Cultura/ F

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