quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Sobre a IV Semana Seu Geraldo de Música

A IV semana Seu Geraldo de Música foi realizada entre os dias 18 e 25 de outubro desse ano. Foram ministradas Oficinas de instrumentos e prática de conjunto, com duração de cinco dias, além de apresentação final dos alunos das oficinas juntamente com os professores.
A Prefeitura de Leme-SP, em parceria com o Instituto Seu Geraldo de Música, realizou o evento  que além das oficinas, contou ainda com apresentações em espaços públicos. O projeto, que ocorre anualmente, tem como objetivo difundir o Choro assim como a obra do instrumentista Geraldo Azevedo, filho de Manoel Gerônimo e pai do extraordinário musico Nailor Proveta.
Os cursos foram ministradas pelos mestres da Escola Portátil de Música, a "seleçao brasileira" dos músicos de choro em atividade.
Confira o vídeo abaixo,

Cassius Jardim, tambem conhecido como Bareta, contribuiu ao blog Du Macedo com belo texto sobre a IV Semana Seu Geraldo de Música, onde esteve presente como aluno e observador.

IV Semana Seu Geraldo de Música (por Bareta)

Andei refletindo sobre as artes em geral e sobre a música em particular. Pensando cá com meus botões chego à conclusão, já de início, de que os botões não são meus. É, não há nada que seja totalmente nosso, muito menos a nossa arte. Ninguém cria nada a partir do nada. Se toda arte é a expressão de nossa personalidade, nossa personalidade é a expressão de nossa experiência e nossa experiência nada mais é do que a relação nossa com o outro.
O outro, na experiência empírica, sensitiva, é a nossa impressão a respeito dele. Caminho que, na arte, se faz exatamente no sentido oposto. Não é raro o estranhamento do artista em relação à própria arte. Após trazer à luz uma obra de arte, é muito comum que o artista se veja alheado em relação a ela. Isso sempre me intrigou, mas é uma experiência usual, chegando a causar em quem produz a arte o impulso de destruí-la. O famoso caso de Michelangelo e o “seu” profeta Moisés pode depor em favor desta minha proposição: “Parla!”
Em relação à música tenho vivido uma experiência muito particular e estimulante. Tenho percebido, cada vez que toco com meus amigos uma sensação única, que venho tentando identificar, ou trazer à razão. Não, não é fácil. Aliás, acho que, além de difícil, é inútil.
A minha sensação ao tocar com outras pessoas é de que não sou eu quem toca, nem eles, nem ninguém. A sensação é de que a música se toca. Ela nos utiliza para se tocar. A música é uma forma de arte tão despida de racionalidade, tão própria e prosaica, que se faz pela vontade de cada um em produzi-la, em ouvi-la. Eu não estou tentando dizer que ela prescinde da técnica, ao contrário. Nós nos preparamos com esmero em nossas técnicas apenas para fazer com que a música aconteça o mais próximo possível da sua natureza pura e bela...e prosaica. Ela é essencialmente uma produção que já está produzida. Nós apenas a trazemos para o mundo sensível. Quando a música acontece, temos a sensação de que ela é uma entidade que não nos pertence, mas que foi trazida à luz, pela comunhão que alcançamos ao tocarmos juntos.
Quando tomo parte em um evento musical como foi a “IV Semana Seu Geraldo de Música”, me fica clara a imagem da música como a experiência da alteridade. É quando eu me sinto mais dentro das pessoas que me rodeiam. Isso não pode ser casual. É justamente a sensação a que a música nos sentencia. Viver o outro é uma possibilidade ao mesmo tempo fascinante e envolvente. Só a música é capaz de fazer isso. Se não nos abrirmos, se não nos transpusermos para o outro, a música não se permitirá acontecer em sua plenitude.
Quando ouvimos espetáculos como os que aconteceram em Leme, no interior de São Paulo, na penúltima semana do alvissareiro mês de outubro, entendemos o que a música quer nos dizer a todos. Não falo apenas dos belíssimos shows com que nos presentearam os professores, músicos excepcionais, ou os convidados, ou a genial Mônica Salmaso. Falo de cada roda de Choro, espontânea e livre. De cada cantoria armada de pronto na praça. Em cada reunião de músicos, às vezes sem se conhecerem anteriormente, que sacavam compulsoriamente seus instrumentos e começavam a tocar, inicialmente com timidez, até que a música lhes chamava ao outro, a si própria. Assim surgiam sons maravilhosos que resultavam da comunhão que só podia vir da música e de sua capacidade de agregar os corações em um só. Falo de uma roda que surge, mesmo dentro de um quarto de hotel, onde amigos se reúnem para conversar, e acabam transformando horas em notas musicais, olhares em acordes, sorrisos em harmonia. Falo de pessoas que se olham e sabem exatamente o que o outro tem no coração, o que o outro traz de dentro de si pra doar. Todos jogam tudo no centro da roda e ela, a música, se mostra e nos diz que cada um de nós é, na verdade, o outro que nos partilha.
Essa foi a música que ouvi em Leme, essa pequena e acolhedora cidade do interior de São Paulo. Essa foi a parte da minha vida que deixei lá e que de lá trouxe, ampliada. A música que se fez ali me fez maior, me fez gigante. Não porque ela tenha sido a música mais impecavelmente executada, com a técnica mais refinada, mas porque ela me mostrou que sou, na verdade, o outro. Ela me mostrou, mais uma vez, que sem o outro a música se recusa a se mostrar. Vai ficar eternamente escondida por baixo de uma nuvem de tristeza, até que os homens se encontrem no coração do outro.
Tenho uma profunda emoção quando penso no privilégio de participar desse evento musical chamado “Semana Seu Geraldo de Música”, por tudo que ele proporciona, a mim e a todos que por lá deixam seus sentidos. Todos nós que vivemos aquela experiência, tenho certeza, nos tornamos melhores e mais ricos. Todos nós saímos de Leme levando um pedaço dela e deixando lá uma parte de nós. Quando vim, o outro veio comigo, eu fui com ele, e, se a música fluir, esse será sempre o lado mais enriquecedor.
(Outubro 2014)
 

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